Acho que não deve existir
mais nenhuma pessoa que veja tevê ou leia jornais e revistas que desconheça o que é o Viagra
e o que ele faz: talvez quase tantas pessoas saibam sobre esse complexo medicamento quanto as que conhecem a aspirina,
o medicamento mais conhecido de todos. É capaz até que "viagra" vire um substantivo comum,
como tantas outras marcas pioneiras, como gilete e a própria aspirina (o nome comercial do ácido
acetilsalicílico, sintetizado pela primeira vez pela empresa alemã Bayer, e a única a deter
direitos sobre a marca).
O Viagra reinou sozinho no mercado pelo menos até 2002, trazendo os
mais fabulosos rendimentos para sua fabricante. Apesar de ser caríssimo (no final de 2002, uma caixinha
com apenas 4 drágeas custava cerca de 80 reais no Brasil, ou seja, 20 reais por relação sexual!),
o Viagra é um dos medicmentos mais vendidos no mundo. Mais recentemente, outros princípios ativos,
como a apomorfina (base do medicamento Uprima), e novas moléculas similares ao sildenafil, como o tadalafil
(base do Cialis, da empresa Lilly) e o vardenafil (da empresa Bayer), entraram ou estão entrando no mercado
para competir com o Viagra, ampliando o fenômeno.
Não é a primeira
vez que ocorre algo como o Viagra. Pouca gente se lembra, mas esse fenômeno de disseminação
em pouquissimo tempo, e de uso em massa pela população, ocorreu na década dos 60s, com a pílula
anticoncepcional.
Existem muitas coisas em comum
entre o lançamento da pílula e do Viagra (curiosamente, ele não tem um nome genérico
tão simples. O que seria: pílula do amor ?). Em primeiro lugar, ambos afetam a função
reprodutiva e sexual humana de forma significativa, com potencial enorme de impacto sobre a moral, os costumes,
a economia, a política, a religião, etc. É bem conhecido como a pílula liberou a mulher
do medo da gravidez, abrindo as portas da felicidade sexual para milhões de pessoas. O sexo passou a ser
praticado por mulheres mais jovens e mais freqüentemente, diminuiu o número de filhos por casal, o
domínio da religião católica sobre seus seguidores foi afrouxado, os costumes se liberalizaram,
e o feminismo recebeu um impulso formidável.
As conseqüências de
tudo isso sobre a sociedade como um todo foram extremamente abrangentes e profundas: para citar apenas uma, basta
ver o que está acontecendo com o perfil demográfico dos países desenvolvidos: ao diminuir
o número médio de filhos por casal a um valor abaixo do mínimo necessário para manter
o crescimento populacional, todo o sistema de aposentadoria entrou em colapso, e o futuro é negro para os
sólidos sistemas de amparo social desses países.
Outra coisa comum entre o Viagra e a pílula é que eles são medicamentos inovadores, chamados
de "designer drugs" (drogas projetadas). Seu desenvolvimento se deu em função dos avanços
do conhecimento científico sobre a fisiologia e a bioquímica, ou seja, como são os mecanismos
normais de funcionamento do nosso corpo; e não através de descobertas empíricas. Um exemplo
de descoberta empírica é a aspirina: ela foi sintetizada quimicamente e se descobriu que era um excelente
antitérmico, analgésico e anti-inflamatório. No entanto, somente passados mais de 70 anos
de sua descoberta é que a ciência descobriu os seus mecanismos de ação no organismo
(por isso o médico inglês John Vane, de um laboratório de pesquisa mantido por uma indústria
farmacêutica, recebeu o prêmio Nobel).
No caso da pilula, ela foi projetada
especificamente para interferir nos sistemas de controle dos ciclos hormonais da mulher que controlam a ovulação
e a menstruação: ela é uma droga sintética que imita a ação dos hormônios
sexuais femininos, inibindo a secreção dos hormônios reais. Assim, a mulher deixa de ovular
(por essa razão o nome científico desta classe de medicamento é anovulatório hormonal).
O caso do Viagra é ainda mais impressionante: a partir do estudo do mecanismo da ereção do
pênis, os cientistas identificaram quais são as substâncias químicas naturais que controlam
o seu fluxo sangüíneo para dentro e para fora, tais como agentes neurotransmissores, hormônios
de ação local e enzimas, e desenvolveram uma droga que atua especificamente em um desses pontos críticos.
O sildenafil, a droga sintética que é o agente ativo do Viagra, inibe uma enzima que faz as veias
de efluxo do pênis relaxarem, levando à deflação do membro após uma ereção.
Com isso, se o indivíduo tiver uma ereção, ela será mantida mais firme e por mais tempo,
possibilitando até vários coitos no período de uma a duas horas. Os estudos científicos
mostraram também que uma pessoa sendo tratada com o sildenafil tem mais ereções espontâneas
por dia (sete a oito) e os orgasmos são mais intensos e satisfatórios. Os novos derivados do sildenafil
devem ampliar esses efeitos, ao reduzir o tempo necessário para a droga agir (cerca de uma hora a hora e
meia no caso do sildenafil), usar outras vias de administração (spray nasal, por exemplo), ou prolongar
o efeito (até 24 horas, como no caso do tadalafil e o vardenafil).
Com tudo isso, o Viagra, que foi criado especificamente para tratar uma disfunção, ou uma doença,
a impotência masculina de causas orgânicas, extrapolou seu objetivo e está sendo usado amplamente
para sobrepujar quimicamente o fantasma de todo homem sexualmente ativo, seja qual for sua idade: a famosa "ansiedade
de desempenho", ou seja, o medo de não conseguir uma ereção. Virou uma droga "recreativa",
e só não o é mais porque ainda exige receita médica para ser comprada ("ainda",
pois é bem provável que a receita passe a ser uma ficção, como para a pílula).
A potência sexual é uma coisa tão importante para a cabeça masculina, e o medo da impotência
temporária ou permanente tão forte, que muitos jornalistas e analistas contemporâneos acham
que o Viagra terá um impacto semelhante ao da pilula anticoncepcional sobre os costumes sexuais.
Antes eu achava que essa afirmação era bastante exagerada, por vários motivos. Primeiro, o
sildenafil não causa ereção, apenas a mantém. Segundo, não é 100 % efetiva,
como a pílula. Para muitos homens, simplesmente não tem efeito, ou não se aplica. Terceiro,
leva uma hora para ter efeito, o que tira de certo modo a espontaneidade de seu uso recreativo. Quarto, tem uma
série de contraindicações, e parece ser perigoso para quem tem doenças cardíacas
(justamente um segmento bastante importante dos homens impotentes). Quinto, foi testado por pouco tempo, e pode
ter efeitos deletérios a longo prazo desconhecidos. Sexto, é muito caro.
Apesar de tudo isso, o Viagra afetou
mesmo significativamente os costumes sexuais, principalmente de homens mais velhos, e sem dúvida aumentou
muito o "quociente de felicidade sexual", e portanto, de felicidade em geral, de uma parcela grande da
humanidade... Se considermos que uma parcela muito pequena da população masculina na faixa de risco
usa o Viagra, temos ainda espaço para muitas mudanças, e as poderosas campanhas publicitárias
da Pfizer, usando Pelé, por exemplo, são um indício disso.
A pesquisa científica não vai parar, e eventualmente os cientistas descobrirão a substância
ideal: ingestão oral, efeito rápido (5 a 10 minutos), provocador ativo de ereção (tomou,
subiu, independente de excitação sexual prévia) e com 100 % de efetividade. Essa sim, vai
ser revolucionária. Aliás, ela já existe, mas não cumpre todos os requisitos acima.
A prostaglandina (conhecida pelo nome comercial de Caverjet) tem todas essas características, com a desagradável
exceção que precisa ser injetada no pênis ! Por isso, embora ela seja altamente satisfatória,
mais de 50 % dos homens impotentes que a utilizavam abandonaram o seu uso depois de um certo tempo.
Não há dúvida que a medicina molecular e as "designer drugs" vão continuar
a evoluir, com um impacto fenomenal sobre a sociedade. Nas próximas décadas, as descobertas da ciência
e as invenções da indústria farmacêutica terão um profundo e duradouro impacto
sobre a condição humana.
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