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O que uma face pode nos ensinar?
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Dra. Valdenize Tiziani
Quando admiramos a beleza de uma criança com traços perfeitos,
corada e feliz não nos damos conta do verdadeiro milagre que se opera na natureza entre a concepção
e o nascimento do bebê. Fatores genéticos, trazidos no DNA dos gametas dos progenitores e, fatores
ambientais, incluindo drogas, álcool e cigarro podem comprometer seriamente a formação do
rosto da criança e causar uma malformação facial. A observação de faces de crianças
em todo o mundo relacionando-as com estudos de biologia molecular ensinam sobre mecanismos importantes de formação
e desenvolvimento ósseo. Esse conhecimento será fundamental para o desenvolvimento de soluções
para estas alterações, com impacto também no tratamento de doenças mais populares como
o câncer e a osteoporose.
Para que se possa entender o impacto do conhecimento destes genes na biologia óssea, é importante
destacar a natureza extremamente dinâmica dos tecidos ósseos. O osso é um tecido vivo, que
se refaz o tempo todo até a morte. Células conhecidas como osteoclastos, são encarregadas
de degradar a matriz óssea calcificada, enquanto outras células conhecidas como osteoblastos têm
a função de repor essa matriz. O equilíbrio dinâmico da atividade destes dois grupos
de células garante a saúde óssea, traduzida no formato e tamanho adequado dos elementos ósseos,
resistência e flexibilidade.
A mais conhecida das malformações faciais é a fissura labial palatina conhecida popularmente como "lábio leporino". Felizmente,
essa alteração dispõe de difundidas técnicas de correção cirúrgica
e a criança tratada desde a tenra infância poderá ter uma vida absolutamente normal.
Muitas outras malformações
craniofaciais trazem conseqüências mais graves à vida destas crianças. Alterações
conhecidas por cranioestenoses, por exemplo, são conseqüência
de defeitos genéticos que determinam a calcificação precoce dos ossos da cabeça do
bebê. Crianças com este problema, não têm as moleiras, que é o tecido de crescimento
ósseo do crânio, permitindo que os ossos cresçam à medida que o cérebro se desenvolve.
Com o fechamento precoce das moleiras, o cérebro, que dobra de tamanho durante o primeiro ano de vida, fica
sem espaço para crescer, sendo comprimido na caixa craniana e empurrando os olhos para fora, o que dá
um olhar assustado à criança. Casos mais graves podem comprometer o desenvolvimento do bebê.
A maior parte destas alterações tem um componente hereditário, fator que facilitou a identificação
dos genes afetados.
Um outro grupo importante de alterações
genéticas craniofaciais são as displasias ósseas, que têm sido objeto de nossas pesquisas iniciadas no pós-doutorado na Universidade
Harvard. Algumas causam o espessamento exagerado dos ossos do crânio. A espessura normal dos ossos do crânio
é de aproximadamente meio centímetro na idade adulta, enquanto na displasia craniometafisária
pode alcançar de 2 a 3 centímetros de espessura. Há compressão dos nervos que atravessam
a caixa óssea, devido ao fechamento dos orifícios, levando à perda da visão e da audição.
O filme Mask (Máscara) com a atriz Cher, que preside uma fundação americana para o tratamento
desta displasia, trata da história de um jovem que morre por compressão neuronal decorrente desta
doença. Nesta alteração, as células que absorvem osso têm a sua ação
reduzida causando um desequilíbrio que leva ao excesso de osso.
Um outro tipo de displasia óssea é chamado de querubismo. O nome foi atribuído pelo fato de que crianças com esta alteração
têm o aspecto de anjos querubins, ou seja as maçãs do rosto bastante aumentadas e os olhos
voltados para o céu. Este aspecto é conferido pela massa de tecido que toma o lugar dos ossos maxilares
e empurra o chão da órbita para cima. Durante os primeiros anos de vida, ocorre a absorção
dos ossos dos maxilares e um tecido fibroso toma o seu lugar, expandindo-se além dos limites das estruturas
ósseas. Neste caso, o desequilíbrio é causado pela ação exagerada dos osteoclastos,
coincidindo com a formação e erupção da dentição permanente.
Colecionando dados de crianças de várias regiões do mundo portadoras destas duas condições,
displasia craniometafisária e querubismo, pudemos identificar os genes alterados. A partir deste conhecimento,
passou-se a estudar as proteínas codificadas por estes genes bem como a sua função no genoma
e nas células. Para isso, expressam-se os genes alterados em cultura de células e em camundongos
de laboratório. Estes estudos permitirão conhecer o mecanismo celular e bioquímico que provocam
tais alterações no desenvolvimento ósseo destas crianças. Esse conhecimento também
contribuirá para o desenvolvimento de tratamentos mais específicos que respeitem a evolução
da doença e permitam prevenir as conseqüências deletérias para o desenvolvimento da criança.
Além disso, saberemos mais sobre o desenvolvimento normal e esse conhecimento poderá ajudar a combater
o câncer e a osteoporose.
Estudos como estes somente são possíveis graças à
participação das pessoas afetadas e à colaboração de profissionais médicos
especializados e cientistas da área básica, numa verdadeira rede de troca de informações.
Existem poucos centros especializados no tratamento de alterações complexas da face. No Brasil, podemos
nos orgulhar de contar com o Hospital
de Cirurgia Plástica Craniofacial da SOBRAPAR em Campinas. Ali, crianças de todo o Brasil recebem o suporte de profissionais
especializados, proporcionando um trabalho de reabilitação que vai muito além das cirurgias
reconstrutoras, incluindo a reabilitação da fala, o aspecto psicológico e educacional, bem
como a reabilitação dentária e oral.
Trabalhando com as crianças da SOBRAPAR por quase vinte anos, posso afirmar aos caros leitores que a face
de uma criança pode nos ensinar muito mais do que nossos olhos podem enxergar. Basta que tenhamos olhos
para ver e a emoção para perceber.
Para Saber Mais
A Autora
Valdenize
Tiziani, Ph.D.
Bióloga, Doutora em Ciências (UNICAMP), Pós Doutorado (Harvard Medical School), Professora
Visitante (Harvard Dental School), Consultora da Harvard Medical International, Consultora da UNESCO
Email: vtiziani@mpcnet.com.br
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