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Malária: A Crise
Global
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Dr. Wanir
José Barroso

A
malária
representa hoje a antroponose de maior prevalência no planeta, isto
é, nenhuma outra doença do homem transmitida a outro homem,
atinge e mata um número tão grande de pessoas, constituindo-se
num dos maiores e mais graves problemas de saúde pública
mundial deste século.
Estima-se hoje
que sua ocorrência no planeta fique perto dos quinhentos milhões
de casos com 1,5 a 2,7 milhões de óbitos anuais. Destes,
aproximadamente um milhão de crianças com menos de 5 anos
de idade são penalizadas com o óbito por malária ou
outra doença associada, sendo uma a cada 30 segundos. Quarenta por
cento da população mundial vive em áreas de transmissão
e exposta ao risco de contrair a doença. São 101 os países
endêmicos de malária, que comportam 112 áreas endêmicas
(regiões que apresentam registros contínuos de casos), todas
localizadas na área tropical do planeta e definidas há pelo
menos três décadas. (OMS - Malária: A Global Crisis,1999).
Países com incidência
de malária (em vermelho)
Fonte: The Walter and Eliza
Hall Institute of Medical Research
Controle
Difícil
Nenhum progresso
foi observado neste período na maioria dos países com relação
ao seu controle. Falência dos sistemas de saúde, resistência
à drogas, movimentação populacional com a doença,
variações climáticas, a não preservação
ambiental e o desenvolvimento de atividades em áreas endêmicas
entre outras causas, têm contribuído para a sua expansão.
A província
de Hubei, na China, foi um dos poucos lugares em que houve progresso com
relação ao controle da malária, quando a sua incidência
foi reduzida de quase 1.000 casos para menos de um caso por 10.000 habitantes
depois de 22 anos de trabalho ininterrupto, em que decisão política
e participação comunitária foram decisivas para o
início e manutenção do controle. Hoje, Hubei é
uma região de transmissão interrompida pelo tratamento de
casos, mas ainda exposta à reintrodução da doença
visto a existência de vetores (mosquitos) e a mobilidade populacional
com malária.
A principal estratégia
utilizada em Hubei foi o pronto diagnóstico e tratamento dos doentes,
em que cada médico tinha por responsabilidade o atendimento de todos
os agravos de saúde em pelo menos 700 pessoas da comunidade. O nível
de informação sobre a doença esteve representado pela
existência da cultura da malária na região, quando
qualquer paciente febril tinha a malária como possibilidade de diagnóstico,
até porque o nível endêmico foi expressivo por muito
tempo, ou seja, a população se acostumou a conviver com um
número significativo de casos, a exemplo do que acontece hoje na
Amazônia. Aliás, Hubei, deve ser reconhecida como um dos poucos
lugares do planeta que teve sucesso ao desenvolver programas de saúde
que atingiram ou estiveram próximo da meta de "Saúde para
todos até o ano 2000".
A
Malária no Brasil
O Brasil vem
registrando, desde 1987, notificações de mais de 500 mil
casos anuais de malária, que é um nível endêmico
muito próximo ao que ocorreria sem nenhuma espécie de controle.
Esse número é sub-estimado, pois devem existir muitos casos
que não são notificados às autoridades sanitárias,
devido ao seu número elevado, a questão da automedicação,
a dificuldade de acesso geográfico e assistencial na Amazônia
e a desinformação sobre a doença. Os casos notificados
que representam apenas uma parcela do número real de casos (OMS-1996),
são de distribuição heterogênea, onde as áreas
de alto risco de transmissão estão relacionadas com atividades
envolvendo questões ambientais como desmatamentos, assentamentos,
exploração de minérios, madeira e argila.
Nos outros estados
brasileiros a situação é de desconhecimento total
da doença e só se pensa às vezes em malária
quando a Amazônia, a África, ou outra área endêmica
passa a ser rota para trabalho, sobrevivência ou lazer. Aquele sentimento
de que a "Amazônia é nossa ou é brasileira" não
tem o mesmo simbolismo quando o assunto é malária, isto é,
para os não atingidos pela doença seu controle é encarado
como um problema exclusivamente amazônico e para os atingidos, como
algo que apenas faz parte da região.
O risco de reintrodução
de malária em várias regiões da extra-amazônia
brasileira é permanente, não só por causa da pressão
exercida pela doença das áreas endêmicas mais próximas,
como a Amazônia e a África, em função da movimentação
populacional com a doença, mas pela existência de anofelinos
(mosquitos transmissores) nestas regiões.
A migração
de vetores (mosquitos anofelinos) infectados em meios de transportes representa
uma outra possibilidade de pressão ou disseminação
da doença, sendo que algumas condições são
necessárias para que isto aconteça, pois o Plasmodium (protozoário
causador da doença) só viaja com o homem doente ou com o
mosquito infectado, levando malária para outras regiões.
Quando
Volta a Malária
Um exemplo
de reintrodução de malária em regiões de transmissão
interrompida, ocorreu em Itaipuaçu, Distrito de Maricá, no
Rio de Janeiro, em 1997, quando um garimpeiro, dentre os milhares de casos
exportados pela Amazônia todos os anos, permaneceu na região
por 13 dias com sintomas, reintroduzindo a doença em três
outras pessoas da região, que só foram diagnosticadas e tratadas
2 meses após a transmissão ter ocorrido.
Estes 3 casos
introduzidos tiveram como causas:
-
a inexistência
da cultura da malária na região, o que dificulta o diagnóstico
em áreas não endêmicas, isto é, não se
pensa nesta possibilidade de diagnóstico, até porque a malária
tem sintomas semelhantes à outras doenças em sua fase inicial.
O diagnóstico de malária importada em áreas não
endêmicas, deixa de ser clínico-laboratorial para ser epidemiológico-laboratorial,
ou seja, a origem do paciente, a data do início dos sintomas, transfusões
sangüíneas em áreas endêmicas ou história
de malárias anteriores dão a principal pista para o diagnóstico.
O Brasil é um país endêmico de malária e essa
possibilidade de diagnóstico deve ser encarada sempre como possível
em qualquer parte de seu território;
-
outra causa, se refere
a questão da automedicação com antimaláricos
na Amazônia, em função de sua venda livre, quando o
introdutor da malária na região se automedicou com o mesmo
medicamento quando contraiu sua primeira malária, provocando o episódio
de recaída por Plasmodium vívax. É comum na Amazônia
as pessoas se automedicarem com o que têm disponível, sem
saber que cada medicamento antimalárico tem suas especificidades
para cada espécie e forma evolutiva do protozoário. A maior
parte dos antimaláricos tem ação sobre as formas plasmodiais
sangüíneas, e apenas um grupo tem ação sobre
as formas plasmodiais hepáticas. O mau uso destes medicamentos aumentam
a resistência do protozoário e a possibilidade de recidivas,
além de outras complicações por conta da contra-indicação.
A cura só se dá com a eliminação total dos
protozoários, tanto à nível sangüíneo
quanto hepático;
-
uma terceira causa
desta reintrodução de malária se refere a questão
da não preservação ambiental, quando ocorreu a formação
de criadouros de anofelinos a partir da retirada ilegal de areia da região,
usada por empresas navais em jateamento de navios, fazendo com que vários
terrenos ficassem abaixo do nível do mar, formando-se os criadouros
por infiltração. Nesta região, o principal transmissor
é o mosquito ¨Anopheles aquasalis¨, cujos criadouros são
formados por água salobra ou até mesmo do mar.

Lâmina microscópica
de sangue com parasita da malária
Controlando
a Malária
A desinformação
sobre a doença ainda é uma das principais causas de óbito
por malária, que provoca o retardo de diagnóstico e o desenvolvimento
da forma grave da doença, quase sempre irreversível. Numa
área endêmica este retardo mantém o protozoário
por mais tempo circulando, viabilizando a doença e mantendo-a como
endêmica.
O folheto "Informações
sobre medidas de prevenção contra malária para viajantes",
produzido pelo Programa de Controle de Malária da Fundação
Nacional de Saúde do RJ, em 96/97, explica o que é a doença,
suas formas de transmissão, o grupo de risco que desenvolve suas
formas graves, medidas de proteção individual com os prós
e contra da quimioprofilaxia, quando se pensar na possibilidade de diagnóstico
de malária, as formas de prevenção em uma área
endêmica, os transmissores e seus criadouros, a lista de áreas
endêmicas no planeta, seus principais sintomas, além dos endereços
e telefones dos Centros de Referência para informações
e/ou tratamento de malária no Rio de Janeiro. Num primeiro momento,
a divulgação deste fez com que vários casos e casos
suspeitos de malária no Rio de Janeiro, procurassem espontaneamente
os Centros de Referência, o que propiciou: a redução
do tempo entre o início dos sintomas e o diagnóstico, a redução
da possibilidade de reintrodução de malária na região,
o não sofrimento do paciente com a evolução para a
forma grave e a não ocorrência de possíveis óbitos.
À luz dos
fatos, a informação sobre a doença representa uma
importante estratégia de vigilância e controle de malária
tanto em regiões endêmicas como não endêmicas,
sendo que a principal estratégia ainda é o pronto diagnóstico
e tratamento do homem doente em qualquer região do planeta.
A presença
e o controle de anofelinos passam a ter importância secundária
em regiões onde não ocorram casos (áreas não
endêmicas) ou em regiões em que estes são prontamente
diagnosticados e tratados, situação esta, em que a oferta
e a circulação das formas plasmodiais sangüíneas
que infectam os mosquitos transmissores ficam reduzidas pela ausência
ou não exposição do homem doente, etapas estas necessárias
para a continuidade do ciclo evolutivo da doença.
O controle de
anofelinos em áreas endêmicas, representa outra importante
estratégia de controle.
Na Amazônia,
a "malária de fronteira", oriunda da ocupação e exploração
desordenada da região foi constatada pelo sanitarista Agostinho
Cruz Marques em 1986 e descrita com as seguintes características:
"elevadas densidade vetorial, exposição a vetores e transmissão
extradomiciliar, reduzida imunidade da população migrante,
reduzido conhecimento da doença, elevada proporção
de malária por P. falciparum, reduzida aplicabilidade de medidas
de controle convencionais, fraca presença de outras instituições,
reduzido senso de comunidade, elevada mobilidade populacional e marginalização
política". Passaram-se os anos e as fronteiras desta malária
hoje apenas delimitam extensas áreas de alta transmissão,
que se acrescidas da instabilidade epidemiológica do Plasmodium
frente aos antimaláricos e dos transmissores (anofelinos) frente
aos inseticidas, torna atual a malária de fronteira de ACM para
o início do milênio.
Diante dos consideráveis
avanços científicos nas áreas da imunologia, biologia
molecular, fisiopatologia, diagnóstico e tratamento, além
de inúmeras constatações epidemiológicas e
terapêuticas sobre a doença, não se observou nenhuma
evolução no controle da endemia ao longo destes anos no país
e no planeta. Entusiasmo científico isolado, sensação
de impotência institucional e valores sócio-epidemiológicos
diferentes para uma mesma doença em uma única região
são fatores que ampliam a distância de um controle possível,
enquanto assiste-se a uma evolução biológica fantástica
do protozoário como ser vivo, que consegue gerar cepas cada vez
mais resistentes e infestar um número de seres humanos sem precedentes,
levando ao óbito principalmente indivíduos marginalizados
e desinformados.
A vigilância
e o controle de malária, em regiões de transmissão
interrompida, (que são regiões que já foram endêmicas,
trataram todos seus casos autóctones mas ainda convivem com o mosquito
transmissor), como várias regiões da extra-amazônia
brasileira, tem como objetivo evitar a reintrodução de malária
através de casos importados. Neste sentido as principais estratégias
de controle são o aumento da informação sobre a doença,
o pronto diagnóstico e tratamento do homem doente, a avaliação
epidemiológica de cada caso e a identificação de outros
possíveis sintomáticos, que representam os principais elementos
necessários para não convivermos com surtos ou epidemias
silenciosas, em que pese nossos mosquitos transmissores estarem silenciosamente
distribuídos.
Realizar estas
atividades até certo ponto complexas do ponto de vista técnico
e caras do ponto de vista financeiro, econômico e social, em regiões
onde existe esta possibilidade de reintrodução, eqüivale
a realizar um trabalho sem fim, pelo menos enquanto estratégias
mais ousadas de controle da doença não forem implementadas
na principal área endêmica do país, a Amazônia.
Acreditamos que deva ser reavaliado o modelo de controle da doença
praticado no Brasil quando nenhum progresso foi constatado a partir de
1970.
A ocorrência
de casos autóctones por P. vívax em regiões de Mata
Atlântica na região sudeste do Brasil, representa uma nova
situação epidemiológica da malária. A existência
de uma população de assintomáticos e oligossintomáticos
soroconvertidos pelo P. vívax em torno de alguns casos investigados
(Fiocruz-1997) e a presença de anofelinos são responsáveis
pela manutenção do Plasmodium circulando na região.
A desinformação sobre a doença possivelmente faz com
que ocorram casos de pacientes diagnosticados e tratados apenas como portadores
de "febre de origem obscura".
Novas medidas
nacionais e internacionais de vigilância e controle, maior envolvimento
da comunidade científica, inclusive da Organização
Mundial de Saúde (OMS), novos critérios
para o bom uso de medicamentos antimaláricos e o aumento da informação
sobre a doença, é o que nos falta.
Sites
na Internet
Referências
Bibliográficas
-
Li Han-fan; Xu Bo-zhao;
Roger Webber - Primary health care: the basis for malaria control in Hubei,
China. Southeast Asian J. Med. Public Health, Vol 26, Nº 1, march
1995.
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crisis, 1999.
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vol 38, 1986.
-
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-
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-
Barroso,W.J.; Aspectos
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Barroso, W.J.; Folder
"Informações sobre Medidas de Prevenção Contra
Malária Para Viajantes(r)" - (Fundação Biblioteca
Nacional/MC - Reg. 181.816, L 308, F 478). Programa de Controle de Malária
FNS/RJ. Ministério da Saúde, 1997.
O
Autor
Sanitarista,
Especialista em epidemiologia e controle de endemias pela Fiocruz
E-mail: wbarroso@netyet.com.br
Créditos das
Imagens
The
Walter and Eliza Hall Institute of Medical Research, Melbourne,
Australia.

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