Reconstruindo o Corpo

Prof. Dr. Renato Sabbatini


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    Imagine um futuro, caro leitor, em que um diabético poderá ser totalmente curado, ao ter seu pâncreas reconstruído com células saudáveis, capazes de produzir insulina. Ou em que uma vítima de um derrame ou de uma lesão no cérebro, ou da doença de Alzheimer, possa recuperar todas suas células cerebrais perdidas. Ou, ainda, uma pessoa que perdeu um braço, uma perna, ou outro órgão, obtenha uma cópia idêntica, reimplantada cirurgicamente.
     
    Esse futuro não está muito distante, graças a uma revolucionária descoberta, feita em 1998, que tornou possível a cultura "in vitro" (ou seja, fora do corpo, em laboratório), das chamadas células-tronco embrionárias. Essas células são as precursoras de todas as células do organismo, e aparecem apenas em estágios iniciais do desenvolvimento do embrião (no ser humano, são apenas 100 células, que vivem por não mais do que dois dias). As células-tronco embrionárias são totipotentes, ou seja, podem se transformar sem restrição, em qualquer outra célula, tais como fibras musculares, células cardíacas, células nervosas, células ósseas, etc. Elas contêm, codificadas em seu código genético, a maquinaria celular necessária para promover esse processo, que se chama diferenciação celular. Os cientistas já conseguiram controlar em parte essa diferenciação, embora ainda não tenham produzido órgãos completos, mas ninguém duvida que isso um dia seja possível.

    Embora as células-tronco embrionárias sejam raras, ao longo do desenvolvimento fetal existem outras, que vão surgindo em linhagens sucessivas, que podem também se diferenciar em vários tecidos diferentes, mas de uma forma mais restrita. São as células pluripotentes, ou células-tronco germinais fetais, que também podem ser obtidas de embriões humanos abortados. Por exemplo, já foram identificadas e mantidas em cultura células-tronco mesenteliais, que podem dar origem a músculos, ossos, gordura e outras células de suporte do organismo (tecido conjuntivo).

    O corpo possui outras células-tronco, que continuam a existir até mesmo na idade adulta. Por exemplo, o sistema hemopoiético (produtor das células sangüíneas), que fica na medula dos ossos, contém células-tronco adultas, que somente conseguem se diferenciar nessas células, e não em outras. No jargão científico, são células chamadas de multipotentes. Atualmente essas células já são utilizadas para repor a medula óssea destruída por quimioterapia ou radioterapia contra o câncer.

    A novidade é que o governo federal norte-americano, que financia 90% das pesquisas básicas e aplicadas realizadas nesta área, resolveu suspender esta semana a moratória que proibia a pesquisa com células-tronco retiradas de embriões abortados. O problema que havia antes com relação essas regrar restritivas é que os grupos pró-vida americanos, que são contra o aborto e a reprodução assistida ("bebês de proveta"), por motivos religiosos ou éticos tinham conseguido influenciar o governo. A única fonte de células-tronco totipotentes e pluripotentes são embriões geralmente obtidos de tentativas de fertilização in-vitro, que existem literalmente às centenas de milhares, congelados em nitrogênio líquido, em clinicas e hospitais que realizam esse procedimento.

    Explicando: quando um casal tem dificuldade de ter filhos, uma das técnicas mais usadas é retirar vários óvulos da mulher (geralmente induzidos por poderosas doses de hormônios), e fertilizá-los fora do corpo, usando o esperma do homem. Os embriões assim formados se desenvolvem por alguns estágios ainda fora do corpo, e, se viáveis, são implantados no útero (da mesma mulher, ou de outra, a chamada "barriga de aluguel") para crescer. Os embriões gerados em excesso são armazenados para fazer outras tentativas, caso as primeiras implantações não funcionem (apenas 20% funcionam), mas acaba acontecendo quase sempre que sobrem embriões. Atualmente muitos países proíbem a destruição desses embriões, ou seu reaproveitamento para pesquisas científicas. Isso está gerando um enorme problema, pois depois de 5 a 7 anos em estoque os embriões podem degenerar em qualidade e não podem ser mais aproveitados para doações ou implantações.

    Como é evidente que milhões de vidas poderão ser salvas, e outras centenas de milhões de pacientes em todo o mundo poderão ser curados se a pesquisa com células-tronco puder avançar, a decisão do governo norte-americano é muito bem vinda. No entanto, os problemas éticos continuam, pois não podemos perder de vista os limites que impeçam o abuso (imaginem um, apenas: alguma empresa pagar pessoas para doar óvulos e esperma para produzir embriões, que serão em seguida destruídos para aproveitar as células-tronco).

    A Associação Americana para o Progresso da Ciência (www.aaas.org) recentemente emitiu um relatório sobre a pesquisa com células-tronco, em que recomenda que somente embriões doados pelos seus legítimos pais sejam usados em pesquisas. É uma saída, mas que vale apenas para os EUA. Limitações éticas rigorosas como essa não costumam ser seguidas por empresas, e muito menos por outros países.



    Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 25/8/2000.

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